terça-feira, 24 de junho de 2014

Não vai ter cópula

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Notícia: Negócios deixam de funcionar dia e noite por falta de segurança
Fonte: Folha
Data: 15/06/2014
Nível do conto: 4
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A paulista Terezinha reuniu as sócias na sala de sua casa muito colorida no velho e cinzento centro. Era uma tarde de quinta e seu desânimo estava contagiante. Dalma, Marli e Dorothy estavam preguiçosas e acostumadas à preguiça tradicional das tardes.

- Precisamos rever nossas estratégias, amores! - Disse Terezinha com voz entrecortada pelo vento do leque.

- Que papo é esse, Terezinha? A gente nem tinha uma estratégia, até onde eu saiba. - Falou a rechonchuda da Marli.

- Tínhamos aquilo que um cliente meu chama de predisposição.

- Isso é o que, mesmo? - Se interessou Dalma, a novata do empreendimento.

- Vontade! Paixão... Volúpia. - Explicou Terezinha. - Mas só nos sobrou o medo. Fomos assaltadas 5 vezes esse mês, meus amores. Estamos indefesas.

- Muito! E o Tarcísio nos deu uma bela banana... - Suspirou triste Dorothy a respeito do último segurança que se apaixonou por um dos clientes das mulheres, deixando-as na mão e fugindo por amor.

- Sim. Por isso é hora de reagirmos, mas vai nos custar caro. Nosso bordel não pode mais abrir na madrugada. - Afirmou Terezinha enquanto retocava o batom vermelho. - Hoje será a última vez!

- Ficou louca, vadia? - Perguntou Marli. - Nosso horário de maior movimento?

- Movimento que vai tudo pro bolso dos bandidos. Eu já me decidi e é assim que vai ser.

(Continuando...)

- Eu não concordo com isso! Temos que entrar em um acordo já. - Reforçou Marli.

- E que solução a espertona acha que tem?

- Terê, vamos fazer assim: a gente contrata um segurança bem truculento, esses leões de chácara mesmo. A gente coloca lá na porta e manda trancar o bordel.

- Mas se é pra trancar, a sua ideia não muda nada! - Terezinha já estava sem a menor paciência para ouvir.

- Deixa eu terminar, pomba! - Se irritou Marli. - A gente tranca tudo e faz uma promoção: "QUEM CHEGAR AQUI DEPOIS DAS ONZE HORAS... SÓ SAI AMANHÃ DE MANHÃ!" - Cantarolou numa paródia tosca de Trem das Onze, dos Demônios da Garoa.

- Achei ótimo! - Disse Dalma, enquanto aplaudia de pé.

- Isso é realmente bom, Marli! A gente fecha um pacote, fatura mais e ainda evita o abre e fecha daquela porta! - Concordou Dorothy.

Com a aprovação de todas, Terezinha não demorou a também aceitar a ideia. Poucos dias depois, o novo segurança já estava contratado. Dorival era imenso e mal encarado. Ficava sentado em um banquinho torto de madeira na porta do bordel.

Um pequeno cartaz avisava da tal promoção, mas não dava maiores explicações.

Dez e meia da noite. Surge um quarentão desavisado que sobe depressa, sem dar muita atenção ao Dorival e ao cartaz. Foi subindo e pedindo uma dose de conhaque. Quinze minutos depois já estava na quarta dose.

Rindo bastante e flertando com todas as meninas, escolheu uma jovem bem bonitinha para levar ao quarto. A princípio estranhou o preço caro, achou que era pela beleza da moça. Mas topou e subiu.

Seu desempenho sexual era bem sofrível e, dez minutos depois, já estava deitado de barriga para cima enquanto a jovem escovava os cabelos.

- Já tá na minha hora, né gatinha? - Perguntou.

- O senhor é quem sabe. São só onze e cinco.

- Ué, quanto tempo eu tenho?

A mocinha riu.
- Até as seis da manhã, como todos os clientes do pacote da noite.

- Olha, eu ia adorar passar a noite contigo aqui, mas se eu chegar muito depois da meia noite em casa eu vou direto pro caixão.

- Mas senhor, é a regra! Ninguém entra e ninguém sai depois das onze da noite. Acho que o senhor vai ter que ficar aqui.

- QUE REGRA É ESSA?!

- Tá avisando lá embaixo já...

- DEIXA DISSO MENINA!

Ele foi se vestindo depressa, visivelmente alterado. Enquanto isso, seus gritos atraíram Terezinha que foi abrindo a porta do quarto.

- O que tá acontecendo aqui, hein?

- Ele se irritou dona Terê...

- A SENHORA PODE ME EXPLICAR QUE HISTÓRIA É ESSA DE NÃO PODER SAIR DAQUI?

- Olha eu botei o aviso lá fora pra ninguém encher o saco! É pra nossa segurança e não tem questionamento. Se já liberou a menina o senhor volta pro bar que tem gente que tá querendo.

- EU NÃO FICO AQUI NESSA ESPELUNCA! EU SOU UM HOMEM DE FAMÍLIA.

Ofendida, Terezinha partiu para cima dele. Foi uma gritaria sem fim.

Sem entender o que acontecia, os clientes saíram correndo e deram de cara com a porta trancada. Mas aí bastaram alguns empurrões para arrombar.

A força do impacto derrubou o truculento Dorival, que estava sentado em frente à porta em seu banquinho velho. O pobre brutamontes bateu com a cabeça no chão e desmaiou, enquanto os clientes saíam correndo pela rua, alguns ainda com as calças nas mãos. Por último, lá vinha o quarentão desavisado, vermelho igual pimentão e xingando os piores palavrões possíveis.

Resultado: todo mundo saiu sem pagar. E mais um segurança se demitiu.

Cinco da manhã e as sócias estavam novamente reunidas, completamente arrasadas.

- Se a gente deixa aberto, perde dinheiro. Se a gente tranca, perde também. Oh vida! - reclamou Dalma.

- Já me cansei disso tudo, essa é que a verdade! - bradou Terezinha, toda roxa depois do empurra-empurra.

- Agora vão dizer que a culpa é minha, é? - disse Marli, pronta para brigar.

- Calma gente! Se de qualquer maneira a gente vai ter prejuízo aqui dentro, o jeito é sair daqui de dentro.

- Como assim? - perguntou Terezinha.

No outro dia, o bordel amanheceu de portas trancada. Agora, com um enorme cartaz grudado na entrada:

"GAROTAS DELIVERY: É SÓ LIGAR, AGENDAR E A GENTE ENTREGA ONDE VOCÊ ESTIVER!"

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Secretária Executiva

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Notícia: Os caminhos que levam ao risco
Fonte: Exame
Data: 01/02/2014
Nível do conto: 1
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O poder era natural na vida de Fernando Belizário: ser presidente da empresa não fazia com que ele se sentisse o dono do mundo.

Por mais que soubesse ser justo, compreensivo e tomar as melhores decisões, Fernando sentia falta de se arriscar um pouco mais.

Até que um dia acordou pronto para correr algum risco. Colocou o seu melhor terno e admirou sua imagem no espelho, estava bastante determinado. Mas apesar de toda a confiança, não sabia exatamente que tipo de risco correria.

Ao chegar na empresa, soube imediatamente o que fazer. Avistou Alicia, a bela recepcionista. Como desejava aquela mulher. Entrou e mandou chamá-la em sua sala. A jovem tremia de medo, esperando sua demissão.

- Alicia, eu vou comunicar ao RH que contrate com urgência uma pessoa para a sua vaga.

- Mas... O que eu fiz de errado, senhor Belizário?

- Nada, minha querida. Apenas quero algo melhor para você. Eu quero você como minha Secretária Executiva. É a posição que você merece ter.

Alicia colocou as mãos sobre a boca abafando um quase grito de surpresa. Se conteve por pouco tempo.

- NÃO ACREDITO! OBRIGADA SENHOR BELIZÁRIO!

Enquanto gritava e ria descontroladamente, deu um abraço apertado no chefe. É claro que uma Secretária Executiva com essa postura dificilmente sobreviveria no cargo, mas Fernando saberia preparar aos poucos a garota para a posição.

Foram meses de treinamento intenso e Alicia, muito aplicada, se desenvolveu muito bem. Fernando fazia questão de estar perto dela e acompanhar tudo, ainda que suas intenções fossem outras.

Para o restante da empresa, a promoção repentina era muito estranha, mas ninguém ousava comentar demais as decisões do presidente pelos corredores.

Sempre muito grata, Alicia era bastante afetuosa e dedicada ao chefe. Para ele, não havia sensação melhor do que ser agradado por ela.

- Como foi bom arriscar nessa menina...

Tanta dedicação fez com que Fernando começasse a confundir as coisas e a manifestar seu desejo por Alicia. Nas reuniões e treinamentos, fazia questão de sentar-se bem próximo e acariciar os cabelos da moça, bem como tocá-la quase que acidentalmente para ver até onde ela permitia.

A gratidão impedia Alicia de reclamar, mas a situação começou a incomodá-la. Valeria a pena correr o risco de repelir o chefe e perder a grande oportunidade em sua carreira? Por ora a jovem aguentava em silêncio as investidas do chefe.

Fernando, enquanto isso, se empolgava cada vez mais. Agora pagava almoços e dava presentes caros à Alicia. Ao mesmo tempo, se aproximava e tocava de leve suas pernas, a barriga... Alicia se sentia invadida, mas nada fazia.

O risco continuava sendo vantajoso para Fernando, que resolveu ir além. Ao final de uma reunião com Alicia, já bem tarde, levantou-se junto com ela e parou atrás da moça. Beijou vagarosamente seu rosto e segurou seu seio. Por alguns segundos, Alicia fechou os olhos e sentiu-se com nojo de si mesma. Seria possível aceitar aquilo? Até onde Fernando iria?

A outra mão de Fernando caminhava pela coxa de Alicia, indo em direção à saia. E assim, toda o incômodo que estava acumulado saiu em um grito, seguido de uma cotovelada. Fernando gemeu de dor, enquanto Alicia corria para fora da empresa.

Ao chegar em casa, checou o celular e viu diversas chamadas de Fernando. Não iria atender nenhuma delas. Desligou o telefone e se deitou. Ali se sentiu em paz, segura.

No dia seguinte, entrou com uma ação por assédio sexual. Não precisou de muito esforço para ganhar a causa. Recebeu uma grande indenização da antiga empresa que utilizou para abrir um negócio próprio com seus pais.

Enquanto isso, Fernando fora afastado do cargo. Ele mudou-se para a Itália e lá permaneceu por muitos anos, escondido pela vergonha e a falta de prestígio no mercado.

Para ele, o risco não foi nada vantajoso. Para ela, foi a conquista de sua felicidade.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

O mistério da mula sem cabeça de Serra Negra

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Notícia: Rã descoberta no Nordeste faz som de cavalo e ganha nome de "pocotó"
Fonte: UOL
Data: 06/06/2014
Nível do conto: 4
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- Ô tia!

- É o quê, Laurina?

- Que história é essa que meu bisavô se morreu por causa da Mula sem cabeça?

- Eita, infeliz... Teve isso não!

- Foi o que meu pai tava dizendo...

- Ah, menina. A gente morava era num sitiozinho bem do pobre perto de Serra Negra.

- Aqui pertinho de São Paulo, é?

- É não, menina! Serra Negra lá no Rio Grande do Norte!

- Então, diga!

- A gente morava num sitiozinho pobre, a casa era de parede de barro, bem humilde... E toda noite Voinho contava história pra botar susto na gente.
A gente se morria de medo, dava o que fazer pra dormir, mas queria mais era ouvir história toda noite.
Até que teve um dia que Voinho contou a história da mula sem cabeça. E que quem se botava pra fora de casa de noite podia era dar de cara mais ela.
Fomo todo mundo dormir, a mãe apagou o lampião e aí que começou um barulho esquisito. Era barulho de cavalo trotando. E não parava era nunca. E a gente foi logo achando que era a tal da mula sem cabeça que veio pra se bulir pro nosso lado.

- Era mula mesmo, era?

- O barulho não parava, tava do ladinho da gente, parecia que ia furar a parede e a mula ia entrar. Era menino gritando e ninguém mais dormia. Só depois de um tempo que o barulho parou. Mas aí que ninguém dormia mais. Quando foi no outro dia que ficou de noite...


Continuando...


- Pois conte tudo, tia! Conte! - Pedia a sobrinha com os olhos esbugalhados ajoelhada aos pés da tia sem paciência por já ter contado aquela história milhões de vezes.

-  Seu pai tava numa fissura danada dizendo que ia proteger nóis da tal da mula. Já tinha todo mundo se aquietado na cama e o meu irmão saiu escondido quando ouviu o trotar de cavalo. Eu peguei a coberta e joguei na cabeça. Não sabia se chamava o pai ou o voinho pra dar jeito e fazer aquela peste ir deitar. E foi que o barulho parou outra vez.

- Meu pai matou a mula?!

- Mas é nada!A mula era um sapinho menor que seu dedo mindinho, menina. Vinha dele aquele barulhinho de poc poc que nem cavalo. Mal dava pra ver na palma da mão do meu irmão. E ele ria, e ria tanto!

- Mas e o bisavô? Se não foi mula sem cabeça, foi o quê?

- Pois a única mula sem cabeça que tinha era ele, que naquela noite bebeu o que não devia, mesmo depois do doutor falar que não podia. O pobre nunca mais se levantou...

- Que história mais sem graça... - Disse a menina dando com os ombros e queixos caídos em sinal de desapontamento.

Ao deixar a tia em paz, a velha sorriu. Olhando pela janela, viu os prédios cinzas da cidade grande e pensou na sobrinha que queria uma mula sem cabeça, sendo que ela nem um sapo coaxando pôde ouvir outra vez desde que chegou alí.

Já não era o mesmo junho de sempre

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Notícia: Ruas de São Paulo já estão decoradas para a Copa do Mundo
Fonte: G1
Data: 20/05/2014
Nível do conto: 3
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Foram mais de 60 anos morando na mesma casinha, em uma rua sem saída na Vila Mariana. Ali, todos os anos, Dona Benedita ajudava a organizar uma animada festa junina.

A festa durava dias e já começava nos preparativos: os adultos colocando bandeirinhas e as crianças correndo em volta, soltando bombinha e ensaiando uma quadrilha desorganizada.

Dona Benedita gostava mesmo era de preparar as comidas, dos doces aos salgados, mas ainda assim não resistia e ia a todo momento até a janela espiar a animação que estava na rua.

O cheiro gostoso que vinha da cozinha, o barulho da risada das crianças... Todo ano era assim, uma alegria só! E Dona Benedita guardava em si essa alegria por todo ano. Junho era o seu mês preferido.

E o tempo foi passando, as crianças foram crescendo, mas nada disso fez morrer a tradição. Começaram a aparecer os netos, as crianças das outras ruas, os novos moradores da região e, por isso, a animação era sempre a mesma.

Acontece que no início desse ano Dona Benedita ficou viúva e, tanto a idade avançada como os problemas de saúde já não permitiam que ela mais morasse sozinha por ali.

Assim, ela acabou indo morar na casa de uma de suas filhas, na Zona Leste.

A adaptação não foi tão ruim, mas a saudade sempre batia. Quando junho chegou, então, foi ainda pior. Seria o primeiro ano em que não ajudaria na festa junina da rua. Pelo visto ia ser bem difícil o seu mês favorito passar.

Em um domingo, enquanto lia em seu quarto, Dona Benedita ouviu bastante barulho vindo da rua. Ela se levantou e foi até o portão espiar.

Diversas pessoas, adultos e crianças, pintavam o chão da rua com as cores da bandeira do Brasil. Desenhavam faixas, brasões e bolas. Amarravam fitas e bandeiras nos postes.

Mas não, aquela não era a sua festa junina... Já não era o mesmo junho de sempre.

Ainda assim, Dona Benedita viu ali a mesma empolgação, o mesmo espírito festeiro de sempre, só o motivo era diferente. Ficou ali parada por um bom tempo, admirando a movimentação.

Até que a angústia foi dando lugar à uma nostalgia muito gostosa. Ela entrou e foi para a cozinha preparar um bolo de chocolate.

O cheiro vindo da cozinha e o barulho vindo da rua foram fazendo um bem danado para Dona Benedita.

Já não era o mesmo junho de sempre. Mas a alegria continuava ali com ela.